Garçom Quanta

Chuva na rua. Cataratas de folhas amarelas, carregadas na enxurrada. Outono já pleno, olhos enxutos. Os dois amigos conversam, um deles em crise existencial das bravas.

–Vê? O que há é isto, apenas matéria. O princípio de tudo é a reação química, que une os átomos, que trazem a chuva…Não passa disso. Somos matéria quantificada.
–Ví um homem perder sua fé. Ele está em minha frente.
–Bah, e de que vale a fé? Serve para aumentar a esperança que no fundo é um sentimento, produzido em neurônios.
–Não creio, sua visão é muito reducionista. Segundo você, a chuva, as folhas, tudo é matéria. Mas é na matéria que mora o espírito das coisas. Ele permeia os quanta. Nada no Universo passa sem a sua marca indelével.
–No fundo, matéria.
–Bem ao fundo, espírito. Ora, se se prova que energia se condensa em matéria, porque não se pode um dia provar que há algo mais além que interações quânticas?
–Baboseiras sentimentais. A fé foi um sentimento inventado pelos espertos sacerdotes antigos para tanger o gado humano; uma maneira de controlar os nascimentos, uma vez que a escassez produzia a fome.
–Você não pode ver que, além das religiões, é possível que exista algo de mais tênue que a própria existência da matéria? Isto é, neste Multiverso, existiriam indeléveis sensações de antes mesmo que a própria existência.
–“No Princípio…”
–“Fiat Lux”.
–Você acredita mesmo Nisso?
–Antes da crença, eu acredito. Não com a razão, mas com meu coração…

O garçom olha a mesa. Vê se ele está interessado em quanta, neurônios, Baghavad Gita, Antimatéria e pósitrons? Ele caminha apressado entre as mesas. Porém, sempre que aqueles dois vêm , ele ganha mais algum. Porque um é materialista e para ele, na matéria reside o lucro, com a mais valia. O outro é mais espírito, de tal forma que é dele que vêm os pedidos mais suaves e sempre com uma entonação respeitosa; não que o outro desrespeite, é apenas mais pragmático. Ele tende a ser mais pragmático também, mas nunca deixa de optar pelo espírito…

–Garçom!

Lá vai mais uma rodada de Ambrosia. Júpiter afia seus raios, que caem em chuva meteórica sobre São Paulo.

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Domingueiras

Ousei enfrentar as

Nuvens

além do brilho de Apolo
Que em seu carro bradava:
–Volta, volta!
Eu mais alto fui.
Qual não foi a surpresa
da queda sem busca.

 

****************

 

Meus caminhos se bifurcam
Mas sempre os tenho em mente
Porque ao invés de soltos
trilho-os com você.

 

****************

 

Cultive o dom de viver
sentindo o som dos dias
Bebendo da vida o vinho
E amando cada maresia.
E chega por hoje
Que me entupi de poesia.

 

*****************

 

Dizem que falta água
Só não faltam peixes
em cardumes ensolarados
Abram as comportas
Que venham sonhos
como touros de arena.

 

******************

 

Vivo da pesca
E dos sonhos
Vívidos
Que ora me habitam
vez ou outra
me possuem.

 

******************

 

Preciso achar as conchas
essas que açoitam meus dias
as que carregam labirintos
Preciso achar os tesouros
escondidos
Quero rasgar os dias e as fontes
E lambuzar de sol as plantas
e os horizontes
e os bandidos
Pedem a ruína aos montes
O que será de mim?

 

********************

 

Não fui à Missa, querida
Endominguei. Não andei
De bicicleta. Não fui ao clássico
Nem saí de mim mesmo
Estou assim meio enxuto
Se a bola vier de viés
Eu chuto
Se der na veneta
Dou cabo do medo
e fim.

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O Degelo

“Tudo começou com o Degelo. Já há algum tempo os gelos deserdavam da Terra, deixando os antes Alpes mais com cara de Mantiqueiras e os Andes calvos. Tudo se espetava no ar calmo da paradeira. Nesse degelo é que surgiram os principais problemas; Fora as cidades mergulhadas em pura água, pequenos inimigos recomeçaram sua vida no antigo Planeta Azul. Pequenos inimigos da alma, corrosivos, invisíveis e sorrateiros. Estes inimigos se plasmavam em tudo. Seu trabalho começou nas grandes estradas do Norte desenvolvido, dizimando arbustos invencíveis. Mirraram todos. A seguir, rodas de caminhões se esfarrapavam em minutos. De quê adiantam rodas sem seu segredo emborrachado? 

Mas o Homem prossegue sua tarefa hercúlea. Sobrevive, mesmo em inóspitas paragens. Conquistou tudo, até o direito de ver o que não se deve. Foi então que começaram as tribos loucas. Gente de todas as cores simplesmente iniciava a caminhada, on the road, livres e soltos. Sem vínculos nem paragens. Milhares abandonavam seus empregos e em nome do Amor, partiam absurdos. Queriam ver de perto o que acontecia sem rodas de caminhões ou carros. As hordas se juntavam a outras que se misturavam a tantas que se tornavam milhões. 

Os cientistas tentavam decifrar seu modus vivendi. Somente viviam. E caminhavam, sem parar, sem destino. Motoqueiros tentaram seguir os destinos daqueles loucos, mas sem rodas de borracha, como ia ser? Nada feito; estes caminharam para o sul. Eram as multidões motorizadas do crepúsculo. Foram todos se espalhando, levando as mocinhas na garupa, leaving home, bye bye. E nunca se viu tanta gente junta, separada dos pais. Rumores corriam que o Degelo abrira a caixa de Pandora, essa maldita que decidiu que a Esperança seria a última que morreria. Ah, e as cidades viraram paraísos aquáticos; onde houvera a seca, agora havia chuva em abundância. Onde houvera a paz, agora havia o medo. Onde houvera liberdade, agora grassava o degredo.

E sobrevive o Homem, esse ser superior, átimo da criatividade divina; adapta-se a tudo. Foi então que surgiram os Vãos Escuros, onde se construíram os lugares aonde não chegassem as águas, nem as motocicletas, nem os caminhantes livres. Quem ainda pensasse que era pouco, sabia que um pesadelo que começa pode ter um fim mais infame. E nesses vãos, nas frestas da Terra Encardida, surgiram as suspeitas do que já se sabia: Eram os Inimigos Invisíveis que haviam invadido o que restara.

Agora já se sabe, através de fragmentos imperfeitos da época, que os últimos homens agora se refestelam ao vento gelado de uma nova era do Homem.”

–Vovô, e como começa o Homem?
–Querida, onde termina o Abismo.

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A dor revitaliza os sonhos, porque se tem o indício do que é e do que ainda será, iluminando o que foi; Pequenos momentos se tornam infinitas virtudes. Aquilo que se dizia “Bah, inútil” se configura como uma chuva de ouro e o deserto, um oásis perto da infinitude de sentimentos que lhe traz à superfície qualquer sofrimento. Por esta causa, o ser humano tem tanta dificuldade em se relacionar com sua alma e essência, porque banaliza tudo em nome do momento de agora, quando sua verdadeira vida está na intimidade, na entrega, no gesto doce, no beijo terno. Nada substitui os fotogramas de nossa essência. Nada pode destruir o filme de sonhos que é a nossa vida. Trabalhem pelo sonho, por favor, não destruam as reminiscências que tanto brilho trazem à existência!

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Para começo de conversa, estou vivo. Não sou desses por aí que andam, copo na mão, desfolhando árvores secas com seus discursos falidos. Eu estou vivo, sou vivo, sangue corre nos vasos. Posso até doar minha vida a quem precisa. Você precisa? Doo vida, doo sangue. Só não vou doar minha alma. Minha alma é transparente, feito um rio nascente, cheia de nuances e cristalinos desvios. Não sou perfeito, longe de mim, porém quem me conhece sabe de minha generosa vastidão. Corro rápido, por entre as frestas de luz das venezianas, sou o primeiro que aparece, meu fluido está em todas as coisas, eu sou da paz e da luz. Não me venha você dizer coisas vãs e inúteis, coisas como ” hoje, acordei estranho, niilista” ou” na espera de um futuro, matei meu presente…”. Eu bato de volta, toma lá, dá cá. Posso até oferecer as duas faces, mas nenhuma delas gosta dessa desfaçatez toda, desse amargor ruminante, dessa ruína corporal que é o tédio. Longe de mim! Tédio, prédio, ódio, ruas cheias de máscaras, abismo cultural, eu não sou fã de ameaças. Não pretendo seguir em proselitismos, sigo tentando o melhor. Não sou Dante a procurar Beatriz, nesse Vale de Lágrimas. Quem achar me conte onde está, estou em outra. Estou na onda da cor suave, estou andando em nave solta, de poucos marulhos; todas as águas que vêm são as melhores. O que me convém.  Vem comigo, então. Tente!

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Os amores se vão. Que é dos amores? Já foram. Viu? Passaram, sobraram as ilusões de sempre. Os tormentos do amor, as dúvidas, a crueza dos dias tortos. Os teus lábios mortos na lembrança. Que é dos amores? Vãos desfeitos. Súplicas, sonhos, temores. Desvãos. Danem-se se não gostam! Leiam assim: Fui um preso em vida, um amálgama de dores. Ou não? E que é dos amores? Onde se enfiaram esses danados, fugitivos de meia-boca, tempestades de sons e cores? Onde, em que barranco se esquivaram de mim? Horror. Que é deles? Onde estava eu, afinal? Onde eu refletia meus olhos nas poças da chuva ácida e retórica? Que é deles, querida? Onde estão, senão escondidos na ferida aberta de minha caminhada? Que é dos amores então?

–Acorde, querido.

–Já?

–Já.

Ah, bom.

 

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As Memórias de Mim

Todos  os caminhos levam ao copo. Isso mesmo, dizem os garçons, enfeitados em suas roupas engomadas, o pano indefectível num braço e o menu no outro. Rodam como se patins houvessem nos pés. Ficam tardes todas servindo; raros são os descansos. Pior são as noites em que têm de ficar enfeitando mãos e bocas de ricaços metidos a besta, sempre com aquele ar blasée, entre um uísque e outro. Nas festas de debutantes, ajudam sempre as mocinhas, solícitos. Também são mestres em passar pés despercebidos em rapazes mal-comportados. Eles caem de bunda e metade dos que servem riem com a disputa de quem derrubou quantos ou quem soube de mais uma nova. Garçons são seres esquisitos. No futebol, o garçom é aquele que serve a jogada para o outro fazer o gol. O garçom carrega o piano do time da casa e ainda vê os outros comerem. São seres poéticos, melancólicos; lembro de um garçom em Buenos Aires: Se ele arrancasse uma dançarina de tango e virasse ao largo uma esquina de rosto colado ao da moça, eu não estranhava.Teve outro no Rio que me surpreendeu com uma observação interessante sobre o espírito das coisas fazendo um paralelo com o espírito do vinho. Não sei se já contei essa.

–Já contou, sim senhor.

Viram? Ele é atencioso, até meio analista. Ele vem perguntar (quando estamos sós) se estamos bem ainda ou se já é hora de levantarmos todos os quatro que sobraram da gente, nessa briga de interiores que é nossa vida emocional. Ah, esses seres meio anjos de bons e maus conselhos. Talvez um desses anjos lhe ajude numa situaçao inusitada, amparando sua tentativa de queda. Noutra ocasião, até lhe oferecerá a outra face da moeda. 

–A conta.

Bom, mas nisso ele cumpre a missão solene de quem sabe ser atento. Astuto, tem seus dez por cento. Não nega um troco a mais, até porque depois, quem sabe, sai com a moça de seus sonhos. Isso se conseguir cruzar com ela. O garçom trabalha aonde todos se divertem e ai, se sai da linha! Cara comprida decerto.

–Vai fechar.

Agora, com licença, retiro-me, porque forças maiores que eu me convencem a parar com minha espiral inspiratória. Afinal, faltam-me aqui as musas que tinha o poeta. Sobram razões para obedecer o sábio sátiro que recolhe os copos, numa sinfonia que irrita os ouvidos mais moucos. Retiro-me, sim, para os escolhos de meu sinuoso quarto, com o velho quadro de um senhor de monóculo que me olha, como que me julgando.

–Que é que você olha?

E do quadro vem o muxoxo: Sabe ele que, dali, só saio dia seguinte.

–Volte sempre.

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A Solidão e Baco

–Tem horas que a gente sente um vazio…
–É a condição humana. Somos solitários, do início ao fim.
–Bobagem! Somos seres sociais.

Os amigos bebericavam no bar, depois de um encontro marcado meio assim de surpresa.

–Eu, por exemplo. Outro dia, pensava em acabar com tudo. Hoje estou aqui com vocês, nessa tarde linda.
–Linda, mas eu me sinto um saco de gordura derretida.
–Eu me sinto um pote de sorvete com direito a derretimento e tudo.
–Exagero!!!

Os outros clientes sofrem com o calor saariano. Uma velhinha de cabelos bem coloridos abana um leque espanhol, de óculos escuros verdes. 

–Pitoresco.
–…Calado, ela pode ouvir.
–Deixa ela se pavonear, uai.
–Sabe, pensei em comprar um pavão.
–Para onde?

O outro o olha, como se não houvesse entendido a pergunta.

–Como assim? Para meu cantinho.
–Ah, bom. Pensei no pavão no apartamento.
–Não não. Calma, sou louco, outro dia queria acabar com tudo, hoje estou aqui e queria ter comprado um pavão.
–Sério mesmo que queria acabar com tudo?

O ar mal-parado, o calor, conferia ao ambiente um certo tremular. As pessoas tinham contornos difusos, os copos suavam, os poros suavam, as peles gordurosas emitiam mais calor ainda. O ventilador do teto espalhava as moscas de diferentes tamanhos. O quase suicida olhava seu copo, entre sério e divertido. O garçom passava de um lado a outro, meio tonto com os pedidos. 

–Ah, a solidão. Vocês não têm ideia. 
–Tão ruim assim?
–Pior é que ninguém te liga nessas horas.
–Uai. nós ligamos. Tanto que está aqui.
–Não é a mesma coisa. Vocês sabem, elas.

Elas não se importam, ora bolas. Cada um na sua! Cada um no seu quadrado. Ninguém se importa se você está mais sozinho que o goleiro na hora do gol. Ninguém quer saber se você precisa de um ombro amigo. Querem mais é viver despreocupados, sonolentos em suas obrigações. Quem quer perder tempo com amigo que precisa de ombro amigo? Coisa chata. Nada disso. Elas não se importam. Jamais se importaram.

–Desvalorizando a gente, hein?
–Ora, vocês não são…Elas.
–Um brinde a elas todas!
–À velhinha do canto, do leque espanhol!
–Psiu, ela já te ouviu.
–À saúde delas todas.

O cheiro azedo do picles ressuma no bar. Há coxinhas no mostruário. Há salsichas boiando na panela, um sanduíche se prepara…

“Coração americano, um sabor de vidro e corte”

–Esses mineiros maravilhosos e suas músicas transcendentes. E você me diz que chegou a pensar no fim de tudo.
–Ah, a solidão…
–Ah, o sabor da coxinha!

Risos.

–À coxinha do Braguinha!!
–Que braguinha, à coxinha…delas.
–Isto é redundância.
–Garçom, traz uma coxa…daquelas.

O Garçom, já sabedor das mandracarias do trio, traz três coxinhas, diz ele, das três Marias. A Santa Maria, a Pinta e a Nina.

“E lá se vai, mais um dia”…

–Sério mesmo que você chegou a pensar…
–…Agora só penso nelas.
–Como sempre. E como sempre, elas não te aguentam.
–Cavaleiro marginal!
–Alguém ouviu de passagem uma moça chamando alguém?
–Ihhh, já alucinando, tão cedo.

O garçom, o eterno mago que tem um quê de médico e doutor, já traz mais uma cerveja para o trio. Santa beberagem essa, inventada por Neandertalenses há tanto tempo…Ou não? O garçom, esse ser abissal que povoa os intervalos das conversas, que faz a fluidez do tempo se tornar palpável, só ele sabe de tudo. Na verdade, é um amálgama, um senhor dos tempos, como o pianista que mesmeriza as plateias com seu solo bachiano. Não existe ser mais etéreo que o garçom, esse mestre dos ares, que ressuma a salsichas, coxas úmidas. Esse pavão que não se pavoneia, discreto como um túmulo para os clientes que o chamam para conversar sobre os abandonos do lar, os segredos dos casais indiscretos…Ah, e ele vem de novo, pra avisar que a velha foi embora, que os casais já se uniram ao mundo de Morfeu faz tempo, prenunciando a tragédia do fechamento do bar.

–Um último brinde!
–À vida.
–Ao garçom, esse Baco travestido.
–A…Elas todas.

Cada um segue seu rumo;eu, de meu lado, sigo o meu. Estive ao lado deles. 

Eu era a Solidão.

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Morrendo de calor aqui, nesse cubículo. Tem de tudo aqui do que preciso: Uma colher de chá, tijolos, uma pequena lâmpada queimada no teto e o ar frio que entra pela soleira de minha cela. Pelo menos um pouco de ar frio, tenho de grudar minha testa na fresta. Poderia ser pior, poderia estar no escuro total, na solitária, cheirando a urina e fezes. Aqui só cheira a mofo. Espere, ruídos. Patinhas se esgueirando. Um rato! Um bom almoço quem sabe? Morrendo de calor aqui, a colhe de chá eu uso para cavar um pouco na pedra durante milênios; daqui a alguns milênios saio pela lateral que já me disseram, é madeira de fino trato em altas árvores que ressumam umidade, apesar do deserto bravio que as tem como vizinho…Ah, a água eu imagino vinho e de um gole só imagino os campos cobertos de nuvens poderosas de chuva 

Um rato! Guloseima à vista. Sei que pode lhes revoltar o estômago…mas a essa hora, é um banquete, ave baco!

Morrendo de calor.

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Solano e Família

Herbert  se considerava um bom homem; vida independente, sabia que seus recursos eram bons, apesar de que se considerava fraco no quesito de relacionamentos. Não conseguia se fixar em nenhum, porque ou  as mulheres que o conheciam eram falsas ou as que ele gostava de verdade se mostravam muito possessivas e sufocantes, daí que ele terminava as relações com medo de ser manipulado por elas. Tinha um bom gênio o rapaz, sem dúvida, bem apessoado, o nariz algo adunco que lhe dava a aparência ora de mouro, ora de índio ( tinha sido este seu apelido na faculdade, “Indio”, embora nunca soubesse que seu pai ou mãe tivessem qualquer parentesco com alguma tribo. Sabia ele que o pai seria bisneto de espanhóis por parte de mãe e por parte de pai, uma certa mistura de italianos espanhóis e talvez alguma parte da obscura origem do país em que vivia. Seus cabelos eram castanho-escuros, os olhos idem e tinha uma boa altura, que herdara da família do pai.

Era o mais novo dos dois irmãos. O mais velho era casado há pouco, uns dois anos atrás achara sua companheira definitiva, uma linda moça loira que cruzara em seu caminho e mudara sua vida de duros cálculos e infinitas horas de trabalho. Desde que a conhecera, passara a ser melhor pessoa, uma vez que era seco no trato com os outros e costumava ser grosso no trato com o pai principalmente. Não havia jeito de que aquilo melhorasse. Uma lástima, porque Franklin (era seu nome) há tempos se decepcionara com a fraqueza do pai em certos aspectos de sua vida, logo ele que era exato, reto, direto, objetivo e racional. O pai, seu exemplo na juventude, passava por fraco para ele, uma vez que acreditava em coisas que ele simplesmente não aceitava. Ora, seu filósofo principal era Hegel, materialista. O pai, espiritualizado, vez por outra tinha suas crises de culpa, como se viver fosse culposo; daí que Franklin não dava muita importância ao pai que estava na curiosa idade da transição, aquela em que não se é mais jovem para aventuras esdrúxulas nem se é velho demais para se entregar ao pessimismo da finitude ou da doença. Engraçado como a vida é irônica: O mais duro com o pai justamente se parecia com ele, o mais novo se parecia mais com a mãe.

A mãe de Herbert e Franklin era a típica espanhola, baixinha e matreira, que vivia economizando em tudo o que podia para que ela e seu pai tivessem uma vida digna. Uma mulher explosiva às vezes, em certos momentos falava palavras duras para seu pai e isto Herbert notara há algum tempo; Franklin se dava melhor com sua mãe, talvez pela proximidade de gênios e comportamento racional. Já o velho, como ele carinhosamente chamava o pai, ah, todo sensível. Cheio de melindres, supersticioso, fazia sempre o mesmo jogo na loteria, porque sabia que um dia iria ganhar uma bolada. Já sua mãe reprovava a fezinha semanal, porque sempre fora adepta do trabalho como forma de ganhar dinheiro.  Seu pai era médico e ainda exercia a profissão e com ele, Herbert, ele se abria nas conversas sobre as situações que vivia no hospital e na vida de contato com os pacientes. Orgulhoso do que fazia, seu pai contava os tais “causos” médicos que diagnosticava, dotado de um faro que procurava transmitir aos estudantes que supervisionava. “Há casos em que o médico, mais do que diagnosticar, tem a obrigação de abrir uma porta para a alma do paciente, no sentido de aproximação, porque a angústia que ele tem deve ser em parte usada de forma terapêutica, de forma que o médico empatiza com o que o paciente apresenta…”

Herbert ligara para o pai, que reclamava que ambos não ligavam muito para ele e ele se sentia só, com suas leituras e literatices, como ele chamava o dom que tinha de escrever. Sim, ele escrevera livros, capítulos de livros para os estudantes, mas não fora muito além na academia porque acreditava que ser docente de fato era mais digno do que apresentar um papel onde estaria escrito que, por direito, poderia se arvorar certos privilégios imerecidos. Ele ensinava, passava sua experiência aos alunos, sentia-se bem assim e pronto. Nada de titulações artificiais (segundo ele). Herbert o fizera ver, mais de uma vez, que ele estava certo mas o velho sempre caia na tecla de que poderia ter feito algo mais, talvez para que, qualificado, pudesse ser mais respeitado entre seus pares.

–Como vai, meu pai?

–Herbert? Ah, vou bem. Mas sabe, achaques de velho…

–Como assim?

–Preciso conversar, não quer marcar um encontro?

Havia uma padaria maravilhosa no bairro em que seus pais viviam; aliás, eram várias competindo entre si. O bairro, há muito tempo a trás , havia sido mais quieto. Porém, com a especulação imobiliária, prédios brotaram como plantas e as árvores que ficaram não davam conta de tanta sombra. Havia ruas em que as árvores predominavam, havia outras em que predominava o deserto das faraônicas torres de mil homens. Prédios residenciais se misturavam com escritórios modernos onde trabalhavam montes de jovens que na hora do almoço atulhavam as padarias. Daí o porquê de tantas no mesmo bairro. Havia as padarias tradicionais que serviam uma infinidade de pães, de vitaminas, de croissants e de salgadinhos. Outras também serviam almoço à la carte, e lá estavam os jovens esfaimados a se cutucarem mutuamente com suas brincadeiras grosseiras ou nos flertes de fila, olhares trocados com um e outra, outro e uma.

Herbert chegara mais cedo, seu pai havia terminado de atender no ambulatório do hospital em que trabalhava e prometera estar a caminho. Notara algo de diferente na voz de seu pai, um tom talvez mais entristecido; ele apostaria numa briga com Franklin. Herbert pediu o de sempre: Um virado à mineira com um belo suco de laranja.  Pediu uma salada que sabia que o pai gostava e um suco de laranja para os dois ( definitivamente, não bebia nem fumava). De quebra, ficou mordiscando uns pedaços de pão que lhe trouxera o garçom que o conhecia do bairro de infância.

–Seu Herbert! Como vai?

Seu cabelo estava branco agora e sua calva se expandira um pouco, desde a última vez que o vira, o tempo passara, mas ele conservara a simpatia que cativava os clientes. 

–Vou bem, Roberto. E você?

–Ah, assim assim. Sabe, minha filha mais velha casou e o genro acha que eu sou sogra, nunca me cumprimenta. Se dá melhor com ela que comigo, puxa o saco dela sempre trazendo um presentinho, uma flor. Pra mim, bastava um vinhozinho desses baratos. Qual! Nem copo d`agua me traz. Parece que faz questão de me destratar. Mas é um bom rapaz, parece com seu irmão, todo cheio dos cálculos.Imagine, minha filha toda artista casada com uma calculadora de bolso.

–Seu Roberto, não seja cruel com os calculadores. Se não fossem os tais, não estaríamos na lua.

–O senhor acredita mesmo que estamos na Lua? Sequer chegamos lá, é tudo mito criado pelos ianques. Esses é que são espertos. Mas os chineses chegam lá, estão se aperfeiçoando!

–Creio eu que sim,  Roberto.  Tem visto meu pai aqui? Marquei com ele.

–Seu pai às vezes vem sozinho aqui , seu Herbert. Ele fica aí nessa mesa, com seu notebook, escrevendo interminavelmente. Não sei o que ele escreve, sei que consome seus sucos, escreve e às vezes tem dado de ficar assim…

–…Assim como?

–Sabe quando a pessoa está solitária? Sabe aquele olhar perdido? Ele para assim ( e imita à perfeição meu pai com o olhar meio dilatado e fixo, o ensimesmamento que produz ideias) e eu fico lá olhando, em quem será que ele pensa? Pensará no que faz? Tenho tanta curiosidade para saber o que pensa seu pai. Parece um homem ocupado, mas nos trata bem a todos. A todos! Generoso, outro dia, ele deu a mim um vinho que o tal de meu genro nunca sequer nem imaginou em dar: Lambrusco frisante, safra boa. Sei que ele não bebe, mas tem um bom gosto!!! Eu e minha velha adoramos e a macarronada correu solta na mesa, com netos pedindo um gole.

–Espero que tenha dado, hein!

–Lambrusco? Um cálice para todo mundo!

E fazia o gesto de saúde, para o ar. Enquanto ele olhava o gesto de Roberto, notou o olhar da moça da mesa da frente; bela loira, belos olhos, belos cabelos soltos, um sorriso que talvez fosse o sorriso do interesse e caça. Conhecia esse olhar, até porque era bem apessoado. Tinha lá seus casos, mas…faltava algo nelas que ele não achava. Não adianta, não achava. E Roberto, embevecido com o sabor do Lambrusco foi o primeiro a ver a silhueta de seu pai que vinha descendo a rua. Lá vinha ele, com seu andar compassado e o ligeiro tremor na cabeça. O tremor que denunciava a idade, dizia ele, o tremor que sempre tivera, dizia sua mãe. Manhoso!

–Olá, Herbert!

–Oi, pai!

–Roberto…

–Seu Solano, estava aqui a falar do vinho que ganhei do senhor.

–…Ah.O Vinho. O Lambrusco!

–O próprio. Nossa!

–Safra boa, da Toscana. Engraçado, nunca estive lá, mas deve ser maravilhoso.

Ele escrevia em seus textos e crônicas sobre viagens que nunca fizera; tinha a propriedade de imergir na ficção e convencer o leitor das viagens mais absurdas, como a que “fizera”ao Ganges e a Bramaputra, sem nunca haver pisado lá. Certa vez escrevera um conto impressionante em que uma jovem empreendia uma viagem sozinha num navio povoado de homens, disfarçada de marinheiro (raspara a cabeça e usava roupas de grumete) para enfrentar o desafio dos mares bravios. Até o enjoo típico das grandes viagens ele conseguira passar, até que um dos marinheiros, numa olhada mais atenta, percebe seus seios no banho de sua cabine. Guarda segredo e todo o conto e a viagem se baseia no enorme desejo que ele tem por ela e no esforço que faz para poupar a moça de um horror inimaginável, para no final do conto, entrar em sua cabine com um ramalhete de flores e beijar sua boca sofregamente numa despedida que trazia mais promessas que propriamente desejos. Ela sai do barco tonta porque gostara principalmente de sua atitude de protegê-la e poupá-la de tudo o que poderia acontecer. E ele, da amurada do navio, disse:

–Espero vê-lo em breve, grumete! Trabalha muito bem!

E ela saindo do porto, sabe que deixou ali uma semente de amor, mesmo entre homens duros. Tudo isso seu pai passara em seu conto e jamais havia viajado de navio. Ele diria que até o marulhar e o gosto salgado lhe ficava na boca, como se entrasse pela escotilha. Ele sempre fantasiava, navegando pelos mares bravios da imaginação, diferente de sua mãe, sempre metódica, exata e reta. Ele transcendia e isso Herbert adorava nele. Claro que sua tendência de sonhar de olhos abertos compensava sua dura vida de médico; ele mesmo lhe dissera que a doença, o sofrimento e a morte lhe criaram nas vísceras o doce sentimento do mundo, tal que as palavras lhe brotavam dos dedos como se histórias fossem. Não ia muito longe e, vez em quando, introduzia algum drama de algum infeliz que atendera em suas histórias mais profundas.

–Herbert, a Vida que nos habita é bem mais que a vida que passa no dia a dia; esse rame-rame, essa rotina que nos faz vivos é o que a Vida nos traz de melhor. De quantos pacientes eu ouvi: Santa Rotina! Volto a ti de olhos fechados…Graças a Deus!

E Herbert ouvia com interesse o que provocava engulhos em Franklin. Não mais de uma vez, este se retirara em franca oposição ao pai. Não se sentia à vontade com ele. Talvez porque sua alma se deformasse de maneira insuportável ao ouvir as narrativas do pai. Talvez por causa disso mesmo derivara para a área do cálculo, da Matemática que, segundo ele, era a Linguagem de Deus. Herbert mais de uma vez achava que a Matemática talvez fosse a linguagem do inefável, mas quem a descobrira fora antes o Homem, que por sua vez fora feito de pó de estrelas e, portanto, não havia nada de mal em contar sobre os homens à mesa, de tal forma que ele não se afugentava. Ouvia com prazer seu pai lhe contar o caso da divertida mulher que lhe procurara pois comera ração de cachorro ou o bêbado que se achava equilibrista, trabalhando toda manhã em andaimes de prédios…

–Herbert, a vida é dura, meu filho.

–Notei certa tristeza em sua voz. Aconteceu alguma coisa?

–Oh, nada de grave…

E o olhar de Solano se perde nas nuvens e se dilata em tempo contraído, numa viagem do tempo em que você enxerga seus diversos eus, os de outrora e o de agora misturados.

–Ah, se tivesse sua idade…Faria tudo de novo. Caro filho, estou em uma curiosa cápsula do tempo.

–como assim?

–Tenho idade e experiência fantástica. Sei se você está doente pelo manquejar, talvez pela postura corporal, pela linguagem que fala através dos olhos marejados ou dos ombros caídos. No entanto, em breve me aposento. Custo acreditar que, em breve, deixarei de ser o que sou para vestir a roupa do absurdo medo, o de não estar/não ser. sim, porque o homem não passa de um corredor que começa num berço e termina em silêncio. Eu ainda não me acho preparado para isso.

–Você diz, pai, para a morte?

–Pois é, essa danada aí. A carranca do que não é, no barco que nunca vem, no mar do que nunca virá. Deixe Caronte atravessar o Estige sozinho.Deus sabe do que falo. Não tem lógica, você se esforça, ouve milhões de pessoas e acaba sozinho ouvindo sua própria respiração enquanto aguarda..o quê mesmo?

–Mas você ainda não deixou de fazer o que gosta.

Solano olha para longe e na janela da padaria quase que vê uma placa anunciando o fim do mundo.

–Eu e sua mãe, sabe, somos difíceis. ela quer tudo certinho, eu nasci tortinho. Sei lá como ela foi gostar de mim. Meu jeito de desentortar foi esse: Ouvindo gente desabafar, ajudando uns a viver, outros tantos a morrer Agora, acho-me no limiar. Que será de mim?

O olhar de Solano de novo perdeu-se. Era hora de comer o lanche. Hora de o suco descer pela garganta, misturando-se aos sucos e passando nos caminhos intestinos, na caminhada fumegante que  transforma água em vinho. O garçom aponta os olhos dele, Herbert os vê marejarem, ele sabe que o que se aproxima deve ser inevitável.

Põe sua mão sobre as mãos do velho, já enrugadas mas ainda quentes. Adivinha nelas o tempo que passou, talvez antecipe nelas o canto do tempo e das eras. Talvez também sinta nas mãos dele o fino pulsar que define a vida e a ausência dela. De quebra, pode sentir também a fina sintonia que existe entre os dois, coisa que o outro nem imagina.

Vê os olhos do pai, os seus marejam também e Roberto, atento a tudo, serve um vinho que recomenda alegremente:

–Lambrusco, seu Solano. Por conta da casa.

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