Herbert se considerava um bom homem; vida independente, sabia que seus recursos eram bons, apesar de que se considerava fraco no quesito de relacionamentos. Não conseguia se fixar em nenhum, porque ou as mulheres que o conheciam eram falsas ou as que ele gostava de verdade se mostravam muito possessivas e sufocantes, daí que ele terminava as relações com medo de ser manipulado por elas. Tinha um bom gênio o rapaz, sem dúvida, bem apessoado, o nariz algo adunco que lhe dava a aparência ora de mouro, ora de índio ( tinha sido este seu apelido na faculdade, “Indio”, embora nunca soubesse que seu pai ou mãe tivessem qualquer parentesco com alguma tribo. Sabia ele que o pai seria bisneto de espanhóis por parte de mãe e por parte de pai, uma certa mistura de italianos espanhóis e talvez alguma parte da obscura origem do país em que vivia. Seus cabelos eram castanho-escuros, os olhos idem e tinha uma boa altura, que herdara da família do pai.
Era o mais novo dos dois irmãos. O mais velho era casado há pouco, uns dois anos atrás achara sua companheira definitiva, uma linda moça loira que cruzara em seu caminho e mudara sua vida de duros cálculos e infinitas horas de trabalho. Desde que a conhecera, passara a ser melhor pessoa, uma vez que era seco no trato com os outros e costumava ser grosso no trato com o pai principalmente. Não havia jeito de que aquilo melhorasse. Uma lástima, porque Franklin (era seu nome) há tempos se decepcionara com a fraqueza do pai em certos aspectos de sua vida, logo ele que era exato, reto, direto, objetivo e racional. O pai, seu exemplo na juventude, passava por fraco para ele, uma vez que acreditava em coisas que ele simplesmente não aceitava. Ora, seu filósofo principal era Hegel, materialista. O pai, espiritualizado, vez por outra tinha suas crises de culpa, como se viver fosse culposo; daí que Franklin não dava muita importância ao pai que estava na curiosa idade da transição, aquela em que não se é mais jovem para aventuras esdrúxulas nem se é velho demais para se entregar ao pessimismo da finitude ou da doença. Engraçado como a vida é irônica: O mais duro com o pai justamente se parecia com ele, o mais novo se parecia mais com a mãe.
A mãe de Herbert e Franklin era a típica espanhola, baixinha e matreira, que vivia economizando em tudo o que podia para que ela e seu pai tivessem uma vida digna. Uma mulher explosiva às vezes, em certos momentos falava palavras duras para seu pai e isto Herbert notara há algum tempo; Franklin se dava melhor com sua mãe, talvez pela proximidade de gênios e comportamento racional. Já o velho, como ele carinhosamente chamava o pai, ah, todo sensível. Cheio de melindres, supersticioso, fazia sempre o mesmo jogo na loteria, porque sabia que um dia iria ganhar uma bolada. Já sua mãe reprovava a fezinha semanal, porque sempre fora adepta do trabalho como forma de ganhar dinheiro. Seu pai era médico e ainda exercia a profissão e com ele, Herbert, ele se abria nas conversas sobre as situações que vivia no hospital e na vida de contato com os pacientes. Orgulhoso do que fazia, seu pai contava os tais “causos” médicos que diagnosticava, dotado de um faro que procurava transmitir aos estudantes que supervisionava. “Há casos em que o médico, mais do que diagnosticar, tem a obrigação de abrir uma porta para a alma do paciente, no sentido de aproximação, porque a angústia que ele tem deve ser em parte usada de forma terapêutica, de forma que o médico empatiza com o que o paciente apresenta…”
Herbert ligara para o pai, que reclamava que ambos não ligavam muito para ele e ele se sentia só, com suas leituras e literatices, como ele chamava o dom que tinha de escrever. Sim, ele escrevera livros, capítulos de livros para os estudantes, mas não fora muito além na academia porque acreditava que ser docente de fato era mais digno do que apresentar um papel onde estaria escrito que, por direito, poderia se arvorar certos privilégios imerecidos. Ele ensinava, passava sua experiência aos alunos, sentia-se bem assim e pronto. Nada de titulações artificiais (segundo ele). Herbert o fizera ver, mais de uma vez, que ele estava certo mas o velho sempre caia na tecla de que poderia ter feito algo mais, talvez para que, qualificado, pudesse ser mais respeitado entre seus pares.
–Como vai, meu pai?
–Herbert? Ah, vou bem. Mas sabe, achaques de velho…
–Como assim?
–Preciso conversar, não quer marcar um encontro?
Havia uma padaria maravilhosa no bairro em que seus pais viviam; aliás, eram várias competindo entre si. O bairro, há muito tempo a trás , havia sido mais quieto. Porém, com a especulação imobiliária, prédios brotaram como plantas e as árvores que ficaram não davam conta de tanta sombra. Havia ruas em que as árvores predominavam, havia outras em que predominava o deserto das faraônicas torres de mil homens. Prédios residenciais se misturavam com escritórios modernos onde trabalhavam montes de jovens que na hora do almoço atulhavam as padarias. Daí o porquê de tantas no mesmo bairro. Havia as padarias tradicionais que serviam uma infinidade de pães, de vitaminas, de croissants e de salgadinhos. Outras também serviam almoço à la carte, e lá estavam os jovens esfaimados a se cutucarem mutuamente com suas brincadeiras grosseiras ou nos flertes de fila, olhares trocados com um e outra, outro e uma.
Herbert chegara mais cedo, seu pai havia terminado de atender no ambulatório do hospital em que trabalhava e prometera estar a caminho. Notara algo de diferente na voz de seu pai, um tom talvez mais entristecido; ele apostaria numa briga com Franklin. Herbert pediu o de sempre: Um virado à mineira com um belo suco de laranja. Pediu uma salada que sabia que o pai gostava e um suco de laranja para os dois ( definitivamente, não bebia nem fumava). De quebra, ficou mordiscando uns pedaços de pão que lhe trouxera o garçom que o conhecia do bairro de infância.
–Seu Herbert! Como vai?
Seu cabelo estava branco agora e sua calva se expandira um pouco, desde a última vez que o vira, o tempo passara, mas ele conservara a simpatia que cativava os clientes.
–Vou bem, Roberto. E você?
–Ah, assim assim. Sabe, minha filha mais velha casou e o genro acha que eu sou sogra, nunca me cumprimenta. Se dá melhor com ela que comigo, puxa o saco dela sempre trazendo um presentinho, uma flor. Pra mim, bastava um vinhozinho desses baratos. Qual! Nem copo d`agua me traz. Parece que faz questão de me destratar. Mas é um bom rapaz, parece com seu irmão, todo cheio dos cálculos.Imagine, minha filha toda artista casada com uma calculadora de bolso.
–Seu Roberto, não seja cruel com os calculadores. Se não fossem os tais, não estaríamos na lua.
–O senhor acredita mesmo que estamos na Lua? Sequer chegamos lá, é tudo mito criado pelos ianques. Esses é que são espertos. Mas os chineses chegam lá, estão se aperfeiçoando!
–Creio eu que sim, Roberto. Tem visto meu pai aqui? Marquei com ele.
–Seu pai às vezes vem sozinho aqui , seu Herbert. Ele fica aí nessa mesa, com seu notebook, escrevendo interminavelmente. Não sei o que ele escreve, sei que consome seus sucos, escreve e às vezes tem dado de ficar assim…
–…Assim como?
–Sabe quando a pessoa está solitária? Sabe aquele olhar perdido? Ele para assim ( e imita à perfeição meu pai com o olhar meio dilatado e fixo, o ensimesmamento que produz ideias) e eu fico lá olhando, em quem será que ele pensa? Pensará no que faz? Tenho tanta curiosidade para saber o que pensa seu pai. Parece um homem ocupado, mas nos trata bem a todos. A todos! Generoso, outro dia, ele deu a mim um vinho que o tal de meu genro nunca sequer nem imaginou em dar: Lambrusco frisante, safra boa. Sei que ele não bebe, mas tem um bom gosto!!! Eu e minha velha adoramos e a macarronada correu solta na mesa, com netos pedindo um gole.
–Espero que tenha dado, hein!
–Lambrusco? Um cálice para todo mundo!
E fazia o gesto de saúde, para o ar. Enquanto ele olhava o gesto de Roberto, notou o olhar da moça da mesa da frente; bela loira, belos olhos, belos cabelos soltos, um sorriso que talvez fosse o sorriso do interesse e caça. Conhecia esse olhar, até porque era bem apessoado. Tinha lá seus casos, mas…faltava algo nelas que ele não achava. Não adianta, não achava. E Roberto, embevecido com o sabor do Lambrusco foi o primeiro a ver a silhueta de seu pai que vinha descendo a rua. Lá vinha ele, com seu andar compassado e o ligeiro tremor na cabeça. O tremor que denunciava a idade, dizia ele, o tremor que sempre tivera, dizia sua mãe. Manhoso!
–Olá, Herbert!
–Oi, pai!
–Roberto…
–Seu Solano, estava aqui a falar do vinho que ganhei do senhor.
–…Ah.O Vinho. O Lambrusco!
–O próprio. Nossa!
–Safra boa, da Toscana. Engraçado, nunca estive lá, mas deve ser maravilhoso.
Ele escrevia em seus textos e crônicas sobre viagens que nunca fizera; tinha a propriedade de imergir na ficção e convencer o leitor das viagens mais absurdas, como a que “fizera”ao Ganges e a Bramaputra, sem nunca haver pisado lá. Certa vez escrevera um conto impressionante em que uma jovem empreendia uma viagem sozinha num navio povoado de homens, disfarçada de marinheiro (raspara a cabeça e usava roupas de grumete) para enfrentar o desafio dos mares bravios. Até o enjoo típico das grandes viagens ele conseguira passar, até que um dos marinheiros, numa olhada mais atenta, percebe seus seios no banho de sua cabine. Guarda segredo e todo o conto e a viagem se baseia no enorme desejo que ele tem por ela e no esforço que faz para poupar a moça de um horror inimaginável, para no final do conto, entrar em sua cabine com um ramalhete de flores e beijar sua boca sofregamente numa despedida que trazia mais promessas que propriamente desejos. Ela sai do barco tonta porque gostara principalmente de sua atitude de protegê-la e poupá-la de tudo o que poderia acontecer. E ele, da amurada do navio, disse:
–Espero vê-lo em breve, grumete! Trabalha muito bem!
E ela saindo do porto, sabe que deixou ali uma semente de amor, mesmo entre homens duros. Tudo isso seu pai passara em seu conto e jamais havia viajado de navio. Ele diria que até o marulhar e o gosto salgado lhe ficava na boca, como se entrasse pela escotilha. Ele sempre fantasiava, navegando pelos mares bravios da imaginação, diferente de sua mãe, sempre metódica, exata e reta. Ele transcendia e isso Herbert adorava nele. Claro que sua tendência de sonhar de olhos abertos compensava sua dura vida de médico; ele mesmo lhe dissera que a doença, o sofrimento e a morte lhe criaram nas vísceras o doce sentimento do mundo, tal que as palavras lhe brotavam dos dedos como se histórias fossem. Não ia muito longe e, vez em quando, introduzia algum drama de algum infeliz que atendera em suas histórias mais profundas.
–Herbert, a Vida que nos habita é bem mais que a vida que passa no dia a dia; esse rame-rame, essa rotina que nos faz vivos é o que a Vida nos traz de melhor. De quantos pacientes eu ouvi: Santa Rotina! Volto a ti de olhos fechados…Graças a Deus!
E Herbert ouvia com interesse o que provocava engulhos em Franklin. Não mais de uma vez, este se retirara em franca oposição ao pai. Não se sentia à vontade com ele. Talvez porque sua alma se deformasse de maneira insuportável ao ouvir as narrativas do pai. Talvez por causa disso mesmo derivara para a área do cálculo, da Matemática que, segundo ele, era a Linguagem de Deus. Herbert mais de uma vez achava que a Matemática talvez fosse a linguagem do inefável, mas quem a descobrira fora antes o Homem, que por sua vez fora feito de pó de estrelas e, portanto, não havia nada de mal em contar sobre os homens à mesa, de tal forma que ele não se afugentava. Ouvia com prazer seu pai lhe contar o caso da divertida mulher que lhe procurara pois comera ração de cachorro ou o bêbado que se achava equilibrista, trabalhando toda manhã em andaimes de prédios…
–Herbert, a vida é dura, meu filho.
–Notei certa tristeza em sua voz. Aconteceu alguma coisa?
–Oh, nada de grave…
E o olhar de Solano se perde nas nuvens e se dilata em tempo contraído, numa viagem do tempo em que você enxerga seus diversos eus, os de outrora e o de agora misturados.
–Ah, se tivesse sua idade…Faria tudo de novo. Caro filho, estou em uma curiosa cápsula do tempo.
–como assim?
–Tenho idade e experiência fantástica. Sei se você está doente pelo manquejar, talvez pela postura corporal, pela linguagem que fala através dos olhos marejados ou dos ombros caídos. No entanto, em breve me aposento. Custo acreditar que, em breve, deixarei de ser o que sou para vestir a roupa do absurdo medo, o de não estar/não ser. sim, porque o homem não passa de um corredor que começa num berço e termina em silêncio. Eu ainda não me acho preparado para isso.
–Você diz, pai, para a morte?
–Pois é, essa danada aí. A carranca do que não é, no barco que nunca vem, no mar do que nunca virá. Deixe Caronte atravessar o Estige sozinho.Deus sabe do que falo. Não tem lógica, você se esforça, ouve milhões de pessoas e acaba sozinho ouvindo sua própria respiração enquanto aguarda..o quê mesmo?
–Mas você ainda não deixou de fazer o que gosta.
Solano olha para longe e na janela da padaria quase que vê uma placa anunciando o fim do mundo.
–Eu e sua mãe, sabe, somos difíceis. ela quer tudo certinho, eu nasci tortinho. Sei lá como ela foi gostar de mim. Meu jeito de desentortar foi esse: Ouvindo gente desabafar, ajudando uns a viver, outros tantos a morrer Agora, acho-me no limiar. Que será de mim?
O olhar de Solano de novo perdeu-se. Era hora de comer o lanche. Hora de o suco descer pela garganta, misturando-se aos sucos e passando nos caminhos intestinos, na caminhada fumegante que transforma água em vinho. O garçom aponta os olhos dele, Herbert os vê marejarem, ele sabe que o que se aproxima deve ser inevitável.
Põe sua mão sobre as mãos do velho, já enrugadas mas ainda quentes. Adivinha nelas o tempo que passou, talvez antecipe nelas o canto do tempo e das eras. Talvez também sinta nas mãos dele o fino pulsar que define a vida e a ausência dela. De quebra, pode sentir também a fina sintonia que existe entre os dois, coisa que o outro nem imagina.
Vê os olhos do pai, os seus marejam também e Roberto, atento a tudo, serve um vinho que recomenda alegremente:
–Lambrusco, seu Solano. Por conta da casa.